A História da Anestesia

“E à mulher Disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.”
Genesis 3:16

Ao longo da história, a dor tornou-se a maior inimiga da humanidade. Durante séculos o homem buscou explicar as causas da dor. À luz das religiões, o céu prometia a felicidade e o inferno era o lugar da dor eterna. A história relata que Jó foi tentado e torturado ao extremo pelo satanás e nos mostra que a atitude correta diante da dor é aceitá-la com resignação. Suportar impassível as dores excruciantes foi virtude valorizada até os anos 1970, quando a indústria farmacêutica desenvolveu analgésicos e anestésico eficazes. Sofrer em silêncio era sinônimo de força, dignidade e orgulho. Aqueles que reagiam com veemência à angústia eram vistos como inferiores, próximo aos animais.

Da Antiguidade até o início da Idade Moderna, a saúde e a doença eram dirigidas pela teoria humoral. Essa explicação afirmava que os quatro humores (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra) deveriam estar em harmonia para o correto funcionamento do corpo humano. O desequilíbrio desses componentes gerariam dores. O sofrimento também era influenciado pelo alinhamento cósmico dos planetas, a dieta, as condições meteorológicas e as relações interpessoais. Como parte do universo, o homem deveria estar equilibrado como ele. Nessa época, a dor tinha significados: era vista como punição dos deuses e purificação do espírito para sua evolução. Para minimizar as dores e reequilibrar o organismo eram feitas sangrias, sessões de oração ou dietas. O anestésico mais utilizado em cirurgias ou doenças era a ingestão de bebidas alcoólicas. Como não havia alívio para as dores, suportá-la impassivelmente era sinal de dignidade e força.

No século XVII, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) elaborou uma teoria que mostrava como a dor era a reação dos filamentos corporais a estímulos nocivos. Seu mecanismo funcionava como a corda que faz tocar um sino: as partículas de um estímulo doloroso entravam pela pele, percorriam a fibra nervosa até o cérebro e ativavam engrenagens mentais que voltavam pelo corpo, afastando o membro do estímulo. Esse modelo perdurou até por volta da metade do século XX e é dele que vem a ideia de que há uma relação direta entre a intensidade do estímulo e a extensão da dor. O analgésico usado na época para cirurgias e dores agudas ainda era o álcool: garrafas de uísque eram o mais importante anestésico em operações.

O Iluminismo trouxe uma série de avanços médicos e científicos, entre eles, conhecimentos mais refinados sobre o sofrimento físico. Os cientistas começaram a estudar a fundo o mecanismo nervoso e os médicos se dividiam entre os que acreditavam que o corpo tem um sistema separado para a percepção da dor e aqueles que defendiam que os receptores para a dor são divididos com outros sentidos, como o toque ou audição. Foi descoberta a morfina, o clorofórmio e o éter e a filosofia democrática da época tornou o alívio das dores um meio legítimo de atingir a felicidade e liberdade. No entanto, os anestésicos ainda não eram confiáveis e médicos e pacientes temiam que ficar insensível à dor pudesse levar à morte.

A grande mudança científica em relação à dor aconteceu a partir da II Guerra Mundial, quando os estudos de neurociência revelaram o funcionamento de seus mecanismos e a relação entre ela e o cérebro. Apesar de os analgésicos terem sido desenvolvidos nos séculos anteriores, apenas nessa época se tornaram confiáveis e amplamente utilizados. A partir dos anos 1970, a indústria farmacêutica passou a comercializar os medicamentos que hoje conhecemos como aspirinas e paracetamol. Entre 1976 e 1977, a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP, na sigla em inglês), reuniu especialistas de diversas áreas médicas para elaborar a definição de dor que é seguida até o presente: “uma experiência emocional e sensorial desagradável associada a uma lesão real ou potencial dos tecidos ou descrita em termos de tal lesão.” Medicamentos derivados do ópio, como a morfina, oxicodona, metadona e derivados da codeína são hoje os analgésicos mais utilizados em todo o mundo. Havia uma ‘hierarquia natural’ de sensações. Na ponta menos sensível da escala estavam os animais, não-europeus, pessoas da classe trabalhadora e crianças.

Na outra ponta, os homens europeus. Como aqueles no lado menos sensível não sofriam, podiam ser maltratados – veja a discussão atual sobre os maus- tratos animais. No século XVIII, as crianças eram vistas como completamente insensíveis à dor, pois, acreditava-se que seus nervos não estavam completamente ‘conectados’. Isso justificava que crianças até dez anos não recebessem alívio para suas dores. Até os anos 1970, mais de metade das crianças entre 4 e 8 anos que passaram por cirurgias como operações cardíacas ou amputações em hospitais americanos não receberam medicação para dor.

Isso só mudou por volta dos anos 1980. A valorização da dor como uma virtude é uma herança de épocas que a possibilidade médica de erradicar dores agudas era limitada. A partir do momento em que a o alívio verdadeiro surgiu, a tolerância ao sofrimento deixou de ser uma atitude louvável e se tornou perversa. Despida do misticismo religioso, a dor se tornou um mal em si mesma. Foi quando ela passou a ser uma inimiga a ser combatida e vencida. Até meados do século XX, pensava-se que as dores do parto, por exemplo, eram um castigo de Deus ou necessárias para o surgimento do amor materno. Também havia o medo da dependência e a perda da dignidade com o uso de analgésicos, pois suportar a dor era a maior das dignidades.

Quando a ciência percebeu que os novos medicamentos eram seguros, começou a entender a dor como desnecessária. Quando temos dor, nos sentimos como se tivéssemos sido injustamente escolhidos para sofrer. Por que eu? O que eu fiz? são as perguntas modernas que fazemos. É contrário aos séculos anteriores, quando havia um sentido para a dor – e nosso papel era descobrir qual seria ele.

História resumida da anestesia 1000 a.C., os assírios comprimiam a carótida.

  • No século 4 a.C., Hipócrates:: Esponja soporífera, impregnada de ópio, vinho e plantas como a mandrágora sob o nariz de seus doentes.
  • Na Europa medieval era comum a concussão cerebral. A técnica consistia em golpear uma tigela de madeira colocada sobre a cabeça do enfermo de forma que o crânio ficasse intacto e o paciente inconsciente.
  • Século 16: Gelo ou neve para congelar partes do corpo do paciente antes da cirurgia.
  • Século 18: Friedrich Mesmer, médico austríaco, usava a hipnose como método anestésico.
  • Até 1842: As anestesias mais utilizadas eram o ópio, plantas como a mandrágora e o vinho. Magias e orações também faziam parte do tratamento - principalmente durante a Idade Média.
  • Depois de 1842: Usado por William Morton e Crawford Long, o éter se converteu num método anestésico de sucesso. Começou a ser substituído na segunda metade do século 19 pelo clorofórmio, elemento mais barato e de efeito duradouro.

Bibliografia:

1. Bourke, Joanna; livro The Story of Pain – From Prayer to Painkillers (A História da Dor – Da Oração aos Analgésicos).